Uma reflexão para o dia de todos os mortos
Quando nem pensava que logo deixaria meu último paradeiro, guardava em uma taça azul algumas sementes de flamboyant de jardim. Meu desejo era plantá-las numa vasilha grande. Pois, sabia que eram sementes de vida e que em contato com a terra úmida haveriam de nascer, e com o tempo se tornariam arvorezinhas e logo depois viriam as flores vermelhas ou amarelas. E embora não tivessem a ternura das rosas alegrariam os olhos de muitos.
Cuidei de embalar a taça azul. Ela já teve uma família, pois tinha outras irmãs. Sei que já fizera muitas viagens e agora, depois de ter perdido suas companheiras residia em meu armário. Gosto de coisas antigas. Elas me lembram pessoas. E olhá-las permite-me ver quem as tocou. É assim que podemos eternizar as palavras, os olhares, os aromas...
Hoje a taça azul está junto dos óculos. Aqueles óculos que facilitavam o olhar de um par de olhos que sempre me olharam com amor. E como é taça que é mais que taça, e óculos são mais óculos, guardo-os com carinho, eles me ensinam que sou gente. Tenho passado, presente e futuro. Sou capaz de pensar e de dar significado às coisas. Opa, sou diferente. Sou especial.
Pode ser melancólico falar dessas coisas. Mas duvido que tantos outros não tenham alguns cacarecos que não de vendem por dinheiro algum porque eles recordam pessoas e histórias que ainda estão no presente.
Bem, quanto as sementes, elas foram entregues a um semeador que me garantiu que já foram plantas. Até me disse que já se partiram ao meio e do seu coração está saindo um caule enfeitado de folhas pequeninas. Ao saber que não são mais sementes pedi ao semeador que conversasse com elas. Elas gostam do silêncio, do frescor da água e do canto dos pássaros, mas também adoram um bom papo. Pois, recebendo os devidos cuidados elas seguem o curso da vida e cumprem a missão para a qual foram destinadas.
Falar de coisas velhas com significados novos é falar de um ser que é capaz de transcender, de ir além. E o único ser que tem esta capacidade somos nós. Aqui vejo os indícios de eternidade.
Escrever sobre sementes é discorrer sobre a vida. É dizer que a vida também é semente. Ou para ser mais direto, somos sementes. Ou como disse o mestre Jesus, somos grãos de trigo. E assim como o grão de trigo traz em si uma gama de possibilidades, se triturado torna-se farinha e como farinha se torna tantos alimentos. Somos grãos de trigo, e se aceitamos passar pelo triturador nossa vida será transformada e nos tornaremos mais que grãos.
Tudo isso para dizer que nossa vida não é tirada, mas transformada. Que verdade consoladora, pois se no minuto final a morte parece vencer, cremos firmemente que seremos transformados e acolhidos no paraíso eterno onde teremos vida em plenitude.
Aqui encontramos razão para viver e lutar em parceria com todas as forças do bem. Sentido para nossas perdas e remédio que ajudam a cicatrizar feridas que foram abertas pela partida de pessoas queridas. Encontramos motivo para suportar e vencer a saudade doída de pessoas queridas que já vislumbram o horizonte da eternidade e vivem uma vida onde o sol não tem ocaso.
É uma eternidade de aurora. Uma plenitude de primavera, pois a noite e o inverno já não existem mais.
Padre João Marcos Moreira
Pároco de Nossa Senhora das Graças
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